sexta-feira, 23 de maio de 2014

Os homens de Médici invadem a Seleção



O jornalista e técnico João Saldanha assumiu o comando da Seleção Brasileira no início de fevereiro de 1969, pouco antes de o escrete iniciar os preparativos para as eliminatórias da Copa, em meio à crise e desesperança que pairavam sobre o selecionado nacional. Naquele momento, o Brasil, CBD e João Havelange precisavam que o selecionado voltasse a despertar a emoção do torcedor e ganhar prestígio.

Médici recebe a delegação após a conquista do Tri




Cada um tinha planos próprios com relação a uma possível vitória no Mundial. Para o país, seria o que faltava para os militares reforçarem a ideia do “Brasil Grande”, para a CBD porque vivia uma crise após as trapalhadas na Copa de 1966 e Havelange porque era candidato à presidência da Fifa.

Para Saldanha, assumir o cargo representava não só ajudar o Brasil a retomar seu caminho no futebol, mas também era ter em mãos uma importante arma política para denunciar os crimes da ditadura, como ele mesmo contou: “Tem tortura, gente sumindo. Posso ser mais útil neste cargo. Útil para o futebol e para a política”.

O jornalista não aceitava a tese de que, ao chamar um comunista para o comando da seleção, a ditadura estaria separando o futebol da política. No entanto, sabia que, além das glórias, “o cargo dava ao titular o poder de falar diariamente a milhões de brasileiros pelo rádio e televisão. Se bem trabalhado, era um poderoso instrumento de formação de opinião”.

Além de causar surpresa como escolhido, Saldanha logo na apresentação espantou a todos ao anunciar a escalação do time titular e reserva do escrete, declarando que sua equipe era formada por onze “feras” dispostas a tudo. No entanto, tal atitude  desagradou Havelange, pois tinha ficado claro que, enquanto o jornalista estivesse no comando, não haveria interferências políticas ou comerciais naquela equipe.

Saldanha sabia que além dos críticos teria de enfrentar outros dois vilões para conquistar o Tri: os militares e a altitude mexicana. O Brasil não teve dificuldade para garantir a vaga para a Copa. Foram seis vitórias em seis jogos com 23 gols marcados e apenas dois tomados, com a equipe apresentando um futebol bonito e convincente, mostrando que o trabalho de Saldanha estava no caminho certo.

Para driblar a altitude do México, o treinador encomendou aos preparadores físicos um estudo que indicasse a melhor preparação física para a Seleção. Aí começaram os embates com a comissão técnica, abrindo as portas, posteriormente, para uma “intervenção militar” no selecionado.

Enquanto Costa e Silva esteve no poder, não se melindrou a influenciar no trabalho de Saldanha na Seleção, o que de certa forma garantia ao treinador tranquilidade para fazer com o escrete aquilo que achava certo. Entretanto, quando o general sofreu uma isquemia cerebral e foi substituído por Médici no poder, a presença do comunista no comando de uma das ferramentas de publicidade do governo começou a incomodar.

Neste período, as agitações políticas ampliavam a sede dos militares em exterminar a esquerda armada no Brasil, entre eles o líder da ALN, Carlos Marighella, assassinado no dia 4 de novembro de 1969. Saldanha era amigo do líder comunista e não deixou barato a morte do companheiro de Partidão.

Com objetivo de conhecer os adversários da equipe na Copa, viajou para a Europa a fim de assistir alguns jogos e se atualizar. O fato é que, como técnico da Seleção Brasileira, Saldanha era bastante requisitado por jornalistas estrangeiros. Aproveitando-se disso, não se fez de rogado e denunciou a repressão no Brasil.

Os militares não gostaram das denúncias de João sobre os subterrâneos da repressão no Brasil. Entretanto, a popularidade do técnico e o sucesso de seu trabalho à frente da Seleção não davam motivos para uma demissão sumária. Até porque, se o afastassem em decorrência das tais denúncias, atestariam que aquilo que fora dito por Saldanha era realmente verdade.

Segundo André Iki Siqueira, biógrafo do treinador, é a partir deste momento que “o governo começou a movimentar-se para não deixar que as glórias do provável tricampeonato ficassem com João. (...) era preciso marcar João mais em cima, e o Planalto queria receber informações do cotidiano dele na concentração, nos treinos, nos intervalos, bas viagens, nos hotéis – queria, enfim, saber de tudo que pudesse desestabilizar o técnico”.

Diante disso, o governo em concordância com a CBD e João Havelange, impôs a presença de militares na comissão técnica da Seleção. O chefe da delegação seria o major-brigadeiro Jerônimo Bastos. A ele se juntaram os preparadores físicos solicitou que a Escola de Educação Física do Exército (Esefex): Carlos Alberto Parreira e o capitão Benedito José Bonetti, os capitães Cláudio Coutinho, Kleber Caldas Camerino e Luis Carlos Pacheco Calomino, além do subtenente Raul Carlesso. De uma hora para a outra, Saldanha estava cercado por seus inimigos dentro da própria Seleção.

Alguns dos militares escolhidos para a Comissão Técnica eram apontados como torturadores. A verdade é que ali exerceriam a importante função de espionar Saldanha e ainda preparar a Seleção no melhor nível possível.

Saldanha sabia que haviam criado um cerco armado em torno dele e, mesmo sem a mesma liberdade para trabalhar, continuou se dedicando ao planejamento para a Copa. Em janeiro de 1970, foi ao México acompanhar o sorteio das chaves do torneio e, em entrevista aos jornalistas estrangeiros, voltou a denunciar a prática de tortura no Brasil.

A entrevista caiu como uma bomba e o governo percebeu que, se antes de conquistar o título Saldanha batia no regime, a situação ficaria pior se voltasse com a Jules Rimet da Copa. Assim, os militares criaram um clima de provocação, imaginando que o perfil “sangue quente” do treinador logo o desestruturaria.

Quando a Seleção chegou a Porto Alegre para um amistoso com a Argentina, em março de 1970, começou a circular o boato de que o Médici queria a convocação de Dadá Maravilha –, centroavante do Atlético Mineiro. Saldanha não se fez de rogado e respondeu ao general via imprensa: ‘O senhor organiza o seu ministério, e eu organizo meu time’.

Após polêmicas com o técnico do Flamengo, Dorival Knippel – conhecido como Yustrich – e o embate dele com Pelé, os mal resultado do jogo-treino com o Bangu, empate em 1 x 1, deu aos militares a chave para a dispensa do treinador.

Jorge Mario Lobo Zagallo foi o escolhido para substituí-lo. Alinhado aos militares, convocou Dario para a Seleção para agradar o general Médici. Manteve a base do time, fez alterações no esquema de jogo e deixou que a conquista – dos jogadores – recaísse sobre o regime, como era de interesse de todos naquele momento. Com isso, a seleção passava a ser mais um quartel dos militares no poder.



(Por Vanessa Gonçalves)


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