O jornalista João Saldanha foi convidado a dirigir a Seleção Brasileira após o fracasso na Copa de 1966. Assumiu o cargo em 1968, escalou de cara seus 11 titulares – que ficaram conhecidos como as Feras do Saldanha – e venceu quem apareceu pela frente.
Usou a notoriedade para denunciar, no exterior, as torturas cometidas pela ditadura brasileira. Foi demitido após polêmica com o presidente Médici, que pediu o atacante Dario Peito de Aço na Seleção, três meses antes da Copa. “Ele escala o ministério. Eu escalo a Seleção”, respondeu João antes de esvaziar o armário e voltar para o jornalismo.
A ditadura de 1964 havia herdado a Seleção Brasileira bicampeã mundial como parte do pacote do país que tomara à força. Na década que antecedeu o golpe, o Brasil superou o complexo de vira-latas e saiu do ostracismo para despontar como candidato a vencer o subdesenvolvimento. No futebol e também nas artes.
Depois de conquistar a América do Sul por dois anos consecutivamente, o Santos de Pelé igualou a Seleção e incluiu duas estrelas mundiais na sua galeria de conquistas. No cinema, o País vencera duas edições do Festival de Cannes – primeiro com O Cangaceiro, em 1953, e em 1962 com O Pagador de Promessas. Na música, a Bossa Nova fazia sombra nas paradas internacionais ao já estabelecido rock and roll. Tom Jobim e Frank Sinatra faziam dupla cantando Garota de Ipanema. O céu parecia ser o limite. O golpe fez a pátria mergulhar no inferno. Também no futebol.
Os militares acreditavam que o tricampeonato no futebol seria favas contadas. Na Copa da Inglaterra, em 1966, um negro moçambicano que vestia a camisa de Portugal fez lembrar que havíamos nos tornado colônia novamente. Eusébio, o Pantera, sepultou as esperanças da caserna com dois gols nos 3x1 que devolveram a Seleção o papel de coadjuvante.
Sem alternativas, desacreditada, a pátria de coturno recorreu a um de seus principais críticos para sair do atoleiro. Ou afundar de vez abraçada com a voz dissidente: João Saldanha.
Comunista de carteirinha, cronista mordaz, frasista como poucos, João não se furtou à convivência com o monstro de coturno para resgatar o futebol para seus verdadeiros donos: os torcedores. Desde o princípio soube que a relação com os novos patrões, esquizofrênica por definição, tinha os dias contados. Sua estratégia era simples: levar o Brasil à Copa do México fazendo encantar; e usar a autoridade do cargo de treinador de uma Seleção novamente vitoriosa para chamar a atenção sobre o país aprisionado.
A política da ditadura quis usar Saldanha. Mas foi o João que deu aula de como o futebol é capaz de contra-atacar em outras trincheiras.
O jornalista-militante-técnico passou pela Seleção como um furacão. Venceu todos os jogos oficiais que disputou. Todos. Ressuscitou o orgulho da camisa verde-amarela. Fez os mais saudosos guardaram na memória a linha de passe entre Didi, Garrincha e Pelé e decorarem a nova geometria da troca de posições no ataque: Jairzinho, Tostão, Edu e Pelé – DNA e promessa de um Brasil imbatível novamente.
Fora de campo, João Coragem – que Nelson Rodrigues apelidou de João-Sem-Medo – fez o que se esperava de um cidadão comprometido com a democracia: denunciou a ditadura por onde passou. Protegeu perseguidos do regime.
A missão a que se propôs estava cumprida quando foi demitido pela CBD, por ordem do patrão fardado, 90 dias antes de a Seleção Brasileira estrear no Mundial de 1970. Sua história está contada em vários livros, dele e de biógrafos. E no ótimo documentário de André Iki Siqueira e Beto Macedo. Zagallo, seu sucessor, levou o Brasil ao título e figura na foto oficial dos tricampeões. Mas a história não contada relata o peso de cada um na vitória.
Mais que a conquista do tri no México, o Brasil deve a João o reencontro com a alegria de jogar bola. Sem baixar a cabeça ao ditador de plantão.
(Por Milton Bellintani)
Nenhum comentário:
Postar um comentário