terça-feira, 20 de maio de 2014

Memórias torturadas de um estádio de futebol

Zuenir Ventura o definiu como "o ano que não terminou". Em "Era dos extremos", Hobsbawm alcunha aqueles dias de maio, na França, como desvairados. Através desses olhares múltiplos, o ano de 1968 proporciona, tanto para quem o rememora, como para quem o historiciza, a impressão de um caleidoscópio.


Policiais cercaram estudantes no Campo do Botafogo

O maio de 1968 na França, capitaneado, sobretudo, por jovens estudantes das mais prestigiosas instituições acadêmicas do país, representou uma transformação histórica das lutas políticas. A crítica e repulsa às instituições, códigos morais e comportamentais símbolos daquilo que se entendia como tradição eram marcas do movimento. E sob o signo da cultura, a juventude entrava no domínio da política. Combatiam-se as formas conservadoras e a visão capitalista – e até a de algumas correntes marxistas – que regiam às relações sociais, o sistema educacional, o trabalho, e até mesmo a subjetividade.

No Brasil, sob a mácula da ditadura, 1968 – a partir de influências externas, mas também pelo contexto interno – foi baliza de muitas transformações. Como afirma Marcos Napolitano em "1964: História do regime militar brasileiro", este ano foi marcado pela radicalização das vanguardas artísticas através de uma nova estética, o Tropicalismo, que aproximava arte e vida; sofisticação da vanguarda e cultura de massas.

Junto a tal vanguarda, parte da classe média se indispôs com o regime e o modo como ele conduzia os rumos políticos do país. A ditadura então fez recair sua violência àqueles que ela prometera proteger ao dar o golpe quatro anos antes. 1968 foi um ano de oposição e enfrentamento ao regime, e por consequência, de repressão, tortura e mortes. O que só pioraria nos anos subsequentes com o AI-5.

Manifestações pedindo liberdade e democracia eclodiram em todo o país, somando-se aos grupos resistentes como a Ação Libertadora Nacional (ALN), dissidência do Partido Comunista Brasileiro (PCB) liderada por Carlos Marighella, que iniciou as primeiras ações armadas mais contundentes contra o regime.

O movimento estudantil, encorpado por alas de outros movimentos sociais, como parte da Igreja Católica, artistas e alguns sindicatos, promoveu ações contra o regime militar. Mas a resistência dos estudantes ganhou outros desdobramentos após a morte do estudante Edson Luís de Lima, em março de 1968.

A resistência e combate aos militares elevou o grau de violência empregado para o controle da população descontente. Mas, mesmo assim, as manifestações de repúdio à violência utilizada pela força policial se espalharam.

Só que o braço repressivo dos militares não tinha controle. Na quinta-feira, 20 de junho, a polícia desbaratou uma assembleia estudantil na reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Praia Vermelha, e prendeu os cerca de 400 participantes. Muitos deles fugiram em direção ao campo do Botafogo, que ficava próximo.

O palco da arte da bola acabou se transformando em presídio temporário para aqueles que, sem sorte, acabaram cercados pelas forças de repressão e ali mesmo, passaram por torturas físicas e psicológicas.

Zuenir Ventura narrou o episódio que chocou a opinião pública na época. "O que ocorreu ali chocou a cidade - uma cidade que, desde a morte de Edson Luis, achava que já tinha assistido a tudo em matéria de violência. Mais do que pela agressão física, as fotos "hediondas" indignavam como símbolos do ultraje. A descrição de soldados urinando sobre corpos indefesos ou passeando o cassetete entre as pernas das moças, junto às imagens de jovens de mãos na cabeça, ajoelhados ou deitados de bruços com o rosto na grama, eram uma alegoria da profanação".

Usando da truculência habitual, os soldados puseram os estudantes deitados de bruços com a cara enfiada no gramado, outros ficaram com as mãos na nuca e encostados a um muro, enquanto as mulheres eram forçadas a andar de quatro diante do escárnio dos policiais.

As consequências da violência policial foram sentidas nos dias subsequentes.  No dia seguinte, que ficou conhecido como "sexta-feira sangrenta", estudantes, apoiados por populares, transformaram o centro do Rio de Janeiro numa praça de guerra. Eles protestavam contra a ação da PM no campo do Botafogo. Enfrentamentos durante todo o dia deixaram como saldo mais de mil presos, sessenta feridos e três mortos. 

Quatro dias depois o país ficaria atônito com a "Passeata dos Cem Mil". Estava claro que a ditadura não estava agradando a todos e que nem o palco do chamado "ópio do povo" seria poupado das cenas da violência dos anos de chumbo.

(Por Thiago Kater)


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