Zuenir
Ventura o definiu como "o ano que não
terminou". Em "Era dos extremos",
Hobsbawm alcunha aqueles dias de maio, na França, como desvairados. Através desses olhares múltiplos, o ano de 1968 proporciona,
tanto para quem o rememora, como para quem o historiciza, a impressão de um
caleidoscópio.
Policiais cercaram estudantes no Campo do Botafogo |
O
maio de 1968 na França, capitaneado, sobretudo, por jovens estudantes das mais
prestigiosas instituições acadêmicas do país, representou uma transformação
histórica das lutas políticas. A crítica e repulsa às instituições, códigos
morais e comportamentais símbolos daquilo que se entendia como tradição eram marcas do movimento. E sob
o signo da cultura, a juventude entrava no domínio da política. Combatiam-se as
formas conservadoras e a visão capitalista – e até a de algumas correntes
marxistas – que regiam às relações sociais, o sistema educacional, o trabalho, e
até mesmo a subjetividade.
No
Brasil, sob a mácula da ditadura, 1968 – a partir de influências
externas, mas também pelo contexto interno – foi baliza de muitas transformações. Como
afirma Marcos Napolitano em "1964:
História do regime militar brasileiro", este ano foi marcado pela
radicalização das vanguardas artísticas através de uma nova estética, o Tropicalismo,
que aproximava arte e vida; sofisticação da vanguarda e cultura
de massas.
Junto
a tal vanguarda, parte da classe média se indispôs com o regime e o modo como
ele conduzia os rumos políticos do país. A ditadura então fez recair sua
violência àqueles que ela prometera proteger ao dar o golpe quatro anos antes. 1968 foi um ano de oposição e enfrentamento ao regime, e por consequência, de
repressão, tortura e mortes. O que só pioraria nos anos subsequentes com o AI-5.
Manifestações pedindo liberdade e
democracia eclodiram em todo o país, somando-se
aos grupos resistentes como a Ação Libertadora Nacional (ALN), dissidência do
Partido Comunista Brasileiro (PCB) liderada por Carlos
Marighella, que iniciou as primeiras ações
armadas mais contundentes contra o regime.
O
movimento estudantil, encorpado por alas de outros movimentos sociais, como
parte da Igreja Católica, artistas e alguns sindicatos, promoveu ações contra
o regime militar. Mas a resistência dos estudantes ganhou outros desdobramentos
após a morte do estudante Edson Luís de Lima, em
março de 1968.
A
resistência e combate aos militares elevou o grau de violência empregado para o
controle da população descontente. Mas, mesmo assim, as manifestações de
repúdio à violência utilizada pela força policial se espalharam.
Só
que o braço repressivo dos militares não tinha controle. Na quinta-feira, 20 de junho, a polícia desbaratou uma assembleia estudantil na reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Praia Vermelha, e prendeu os cerca de 400 participantes. Muitos deles fugiram em direção ao campo do
Botafogo, que ficava próximo.
O palco da arte da bola acabou se transformando em presídio temporário para aqueles que, sem sorte, acabaram cercados pelas forças de repressão e ali mesmo, passaram por torturas físicas e psicológicas.
O palco da arte da bola acabou se transformando em presídio temporário para aqueles que, sem sorte, acabaram cercados pelas forças de repressão e ali mesmo, passaram por torturas físicas e psicológicas.
Zuenir Ventura narrou o episódio que chocou a opinião pública na época. "O que ocorreu ali chocou a
cidade - uma cidade que, desde a morte de Edson Luis, achava que já tinha
assistido a tudo em matéria de violência. Mais do que pela agressão física, as
fotos "hediondas" indignavam como símbolos do ultraje. A descrição de
soldados urinando sobre corpos indefesos ou passeando o cassetete entre as
pernas das moças, junto às imagens de jovens de mãos na cabeça, ajoelhados ou
deitados de bruços com o rosto na grama, eram uma alegoria da profanação".
Usando da truculência habitual, os soldados puseram os estudantes deitados de bruços
com a cara enfiada no gramado, outros ficaram com as mãos na
nuca e encostados a um muro, enquanto as mulheres eram forçadas a andar de
quatro diante do escárnio dos policiais.
As consequências da violência policial foram sentidas nos dias subsequentes. No dia seguinte, que ficou conhecido como "sexta-feira sangrenta", estudantes, apoiados por
populares, transformaram o centro do Rio de Janeiro numa praça de guerra. Eles protestavam contra a ação da PM no campo do Botafogo. Enfrentamentos
durante todo o dia deixaram como saldo mais de mil presos, sessenta feridos e três mortos.
Quatro dias depois o país ficaria atônito com a "Passeata dos Cem Mil". Estava claro que a ditadura não estava agradando a todos e que nem o palco do chamado "ópio do povo" seria poupado das cenas da violência dos anos de chumbo.
(Por Thiago Kater)
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