Em sua ilusão de reinado, o ditador Augusto Pinochet não
fez questão de vender uma face risonha. Ao contrário de Emílio Médici,
travestido de torcedor nas tribunas dos estádios brasileiros. A cara fechada
era a marca do general que afundou o Chile nas trevas e quase levou junto o
orgulho do futebol de seu país.
O placar do Estádio Nacional anuncia a vitória por WO do Chile sobre a URSS, que se negou a jogar no campo que trocou o futebol pela tortura |
A derrota da
estratégia de Pinochet tem nome e sobrenome: Carlos Caszely. E como palco, o
Estádio Nacional, em Santiago, que durante dois meses foi transformado em campo
de concentração ao estilo nazista. Para lá foram levados cerca de 12 mil
prisioneiros. Não só chilenos. Entre eles estava o jornalista brasileiro
Clayton Netz, que sobreviveu para contar a história. E entre os 38 mortos
oficialmente reconhecidos na cancha santiaguenha havia um brasileiro: Wânio José
de Mattos.
Atacante do Colo Colo e da seleção do
Chile, Carlos Caszely usava na camisa o mesmo número 7 de Garrincha e
Jairzinho. Mas, diferentemente dos ponteiros brasileiros, alheios à política,
era tão atuante fora do gramado como dentro dele. Caszely e a família haviam
apoiado a eleição do médico Salvador Allende para a presidência da República,
na frente de esquerda que o elegeu como primeiro socialista a chegar ao poder
pela via eleitoral, em 1970. Esteva em comícios da Unidade Popular e cantou
junto as músicas interpretadas nos palanques, favelas e manifestações de rua
por artistas como Victor Jara, Isabel e Angel Parra – filhos de Violeta Parra –
e os grupos Quilapayun e Inti-Illimani.
No mundo da bola, tinha prestígio
comparável ao dos craques brasileiros. A ditadura nem cogitou de censurar a sua
presença na seleção, segura que estava que ele se submeteria ao poder das
botas. Estava enganada.
Assim como nunca se intimidou com os
zagueiros mal encarados, Caszely não baixou a cabeça quando a seleção chilena foi
convocada pelo ditador para bater continência após a classificação para o
Mundial de 1974, na Alemanha – beneficiada pelo WO contra a União Soviética,
que se negou a disputar a partida decisiva contra os chilenos no Estádio
Nacional, esvaziado de prisioneiros para a realização do jogo dias antes, mas
ainda cheirando a sangue e gemendo a dor dos mortos e torturados em suas dependências.
Pinochet quis capitalizar o entuasismo
popular pela classificação. Um a um, desfilou diante dos jogadores – como se estivesse
passando a tropa em revista. Parou diante de Caszely, que foi ao encontro de
gravata vermelha – cor da bandeira e da camisa da seleção chilena, mas também
da bandeira socialista de Allende, que o jogador portou tantas vezes nas ruas.
Ao contrário de seus companheiros de
time, não deu a mão do ditador. Nem se intimidou quando Pinochet ironizou a
gravata, dizendo que tinha vontade de cortá-la. A mãe do atleta, Olga Garrido,
foi presa e torturada pela ditadura.
Na derrota para a Alemanha por 1 a 0,
na partida de abertura da Copa de 1974, Caszely foi expulso. A imprensa pró-Pinochet
o tratou como bode expiatório. A culpa seria do socialista Carlos Caszely. Mas
a versão não convenceu.
A cada dia que passa, a história real dá
mais razão ao ex-camisa 7 da seleção do Chile. Ele venceu o ditador sem dar um
drible sequer. Foi a jogada que marcou sua vida. Como atleta. E cidadão.
(Por Milton Bellintani)
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