sábado, 24 de maio de 2014

O dia em que Caszely bateu Pinochet



Em sua ilusão de reinado, o ditador Augusto Pinochet não fez questão de vender uma face risonha. Ao contrário de Emílio Médici, travestido de torcedor nas tribunas dos estádios brasileiros. A cara fechada era a marca do general que afundou o Chile nas trevas e quase levou junto o orgulho do futebol de seu país. 

O placar do Estádio Nacional anuncia a vitória por WO do Chile sobre a URSS, que se negou a jogar no campo que trocou o futebol pela tortura

 A derrota da estratégia de Pinochet tem nome e sobrenome: Carlos Caszely. E como palco, o Estádio Nacional, em Santiago, que durante dois meses foi transformado em campo de concentração ao estilo nazista. Para lá foram levados cerca de 12 mil prisioneiros. Não só chilenos. Entre eles estava o jornalista brasileiro Clayton Netz, que sobreviveu para contar a história. E entre os 38 mortos oficialmente reconhecidos na cancha santiaguenha havia um brasileiro: Wânio José de Mattos.

Atacante do Colo Colo e da seleção do Chile, Carlos Caszely usava na camisa o mesmo número 7 de Garrincha e Jairzinho. Mas, diferentemente dos ponteiros brasileiros, alheios à política, era tão atuante fora do gramado como dentro dele. Caszely e a família haviam apoiado a eleição do médico Salvador Allende para a presidência da República, na frente de esquerda que o elegeu como primeiro socialista a chegar ao poder pela via eleitoral, em 1970. Esteva em comícios da Unidade Popular e cantou junto as músicas interpretadas nos palanques, favelas e manifestações de rua por artistas como Victor Jara, Isabel e Angel Parra – filhos de Violeta Parra – e os grupos Quilapayun e Inti-Illimani.

No mundo da bola, tinha prestígio comparável ao dos craques brasileiros. A ditadura nem cogitou de censurar a sua presença na seleção, segura que estava que ele se submeteria ao poder das botas. Estava enganada.

Assim como nunca se intimidou com os zagueiros mal encarados, Caszely não baixou a cabeça quando a seleção chilena foi convocada pelo ditador para bater continência após a classificação para o Mundial de 1974, na Alemanha – beneficiada pelo WO contra a União Soviética, que se negou a disputar a partida decisiva contra os chilenos no Estádio Nacional, esvaziado de prisioneiros para a realização do jogo dias antes, mas ainda cheirando a sangue e gemendo a dor dos mortos e torturados em suas dependências.

Pinochet quis capitalizar o entuasismo popular pela classificação. Um a um, desfilou diante dos jogadores – como se estivesse passando a tropa em revista. Parou diante de Caszely, que foi ao encontro de gravata vermelha – cor da bandeira e da camisa da seleção chilena, mas também da bandeira socialista de Allende, que o jogador portou tantas vezes nas ruas.

Ao contrário de seus companheiros de time, não deu a mão do ditador. Nem se intimidou quando Pinochet ironizou a gravata, dizendo que tinha vontade de cortá-la. A mãe do atleta, Olga Garrido, foi presa e torturada pela ditadura.

Na derrota para a Alemanha por 1 a 0, na partida de abertura da Copa de 1974, Caszely foi expulso. A imprensa pró-Pinochet o tratou como bode expiatório. A culpa seria do socialista Carlos Caszely. Mas a versão não convenceu.

A cada dia que passa, a história real dá mais razão ao ex-camisa 7 da seleção do Chile. Ele venceu o ditador sem dar um drible sequer. Foi a jogada que marcou sua vida. Como atleta. E cidadão.


(Por Milton Bellintani)

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