O Mundial de 1978, na Argentina,
aconteceu sob o ápice do terrorismo de Estado na América Latina. Todo o Cone
Sul vivia sob o domínio dos militares. A ditadura instalada em março de
1976 assassinou e fez desaparecer mais de 30 mil argentinos e cidadãos de
outras nacionalidades. Um deles foi o músico brasileiro Tenório Jr., que estava
no país acompanhando a turnê de Vinicius de Moraes e Toquinho. Desapareceu no
dia 18 de março, sequestrado por agentes que participavam da conspiração do
golpe em marcha, que seria dado no dia 24.
O ditador Jorge Videla comemora título da Argentina na Copa de 1978 |
No livro "Nuestro Vinicius –
Vinicius de Moraes en el Río de la Plata" (Editorial Sudamericana), a autora
Liana Wenner relata que ele foi executado com um tiro na Escuela de Mecánica de
la Armada, onde mais de 5 mil pessoas foram assassinadas nos sete anos que
durou a ditadura, no dia 27 de março. A história do assassinato de Tenório Jr. foi encoberta pela ditadura brasileira, apesar dos esforços de Vinicius para
localizar o amigo.
No Brasil, a mídia tradicional preferiu se escandalizar com a
desclassificação da Seleção Brasileira por causa do arranjo entre governos que
teria feito o Peru entregar o jogo para a Argentina. Os donos da casa
precisavam de uma diferença de quatro gols a favor para eliminar o Brasil e ir
à final. Ganharam por 6 a 0. Por aqui, a seleção comandada pelo técnico Cláudio
Coutinho, militar de patente capitão, ganhou status de campeã moral.
No mundo real, que as manchetes dos jornais não refletiam, a imoralidade
que corria solta era a ordem para matar e sumir com os vestígios das vítimas.
Se, no Brasil, o capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho – o Sérgio Macaco
–, que comandava a tropa de elite Para-Sar, de salvamento, não aceitou a ordem
do brigadeiro João Paulo Burnier de explodir a central de gás do Rio de Janeiro
(Gasômetro) em 1968, o que mataria centenas de pessoas num atentado que seria
atribuído aos comunistas, na Argentina a Aeronáutica foi peça fundamental no
sumiço dos corpos dos presos políticos. De helicóptero, milhares foram atirados
ao mar – já mortos ou ainda vivos, dopados.
Tudo isso aconteceu enquanto nos estádios argentinos o mundo fazia de
conta que a disputa entre as nações se dava pela mediação de uma bola de
futebol.
A história de Laura Estela Carlotto, estudante de história da Universidad
de la Plata e militante da Juventud Peronista, resume a tragédia argentina.
Sequestrada em novembro de 1977, gravida de três meses, foi mantida viva em um
centro clandestino de repressão até o nascimento do bebê. A criança, um menino,
segundo relato de ex-presas que sobreviveram, nasceu em 26 de junho de 1978,
apenas dois dias após a Argentina vencer a Holanda por 3 a 1, em Buenos Aires,
e sagrar-se campeã mundial pela primeira vez.
Estela Carlotto, líder das Abuelas de Plaza de Mayo |
Estela Barnes Carlotto, professora e mãe de Laura, deixou a profissão para
dedicar–se à busca da filha desaparecida e do neto, sequestrado pela ditadura.
Ele foi um dos cerca de 500 bebês roubados de suas famílias. O corpo da
filha lhe foi entregue pelos militares dois meses depois, com a recomendação de
que voltasse à sua rotina de aulas. Ela não obedeceu.
Ao lado de outros familiares, Estela criou a organização Abuelas de
Plaza de Mayo. Com apoio de militantes dos direitos humanos e da luta pela
memória, verdade e justiça, as avós criaram um banco de dados genéticos. Graças
a ele, e a uma intensa campanha para busca dos filhos e netos entregues a
outras famílias, conseguiram identificar, localizar e restituir a verdadeira
identidade de 108 deles. Faltam 392. Um deles é Guido de Carlotto, filho de
Laura, que queria que o filho tivesse o mesmo nome do avô.
A conquista do título não encobriu as atrocidades cometidas pelo regime
do general Videla. Preso e condenado por genocídio, ele morreu na prisão em
2013.
(Por Milton Bellintani)
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