sexta-feira, 30 de maio de 2014

Copa da Argentina encobriu terrorismo de Estado

O Mundial de 1978, na Argentina, aconteceu sob o ápice do terrorismo de Estado na América Latina. Todo o Cone Sul vivia sob o domínio dos militares.  A ditadura instalada em março de 1976 assassinou e fez desaparecer mais de 30 mil argentinos e cidadãos de outras nacionalidades. Um deles foi o músico brasileiro Tenório Jr., que estava no país acompanhando a turnê de Vinicius de Moraes e Toquinho. Desapareceu no dia 18 de março, sequestrado por agentes que participavam da conspiração do golpe em marcha, que seria dado no dia 24. 

O ditador Jorge Videla comemora título da Argentina na Copa de 1978

No livro "Nuestro Vinicius – Vinicius de Moraes en el Río de la Plata" (Editorial Sudamericana), a autora Liana Wenner relata que ele foi executado com um tiro na Escuela de Mecánica de la Armada, onde mais de 5 mil pessoas foram assassinadas nos sete anos que durou a ditadura, no dia 27 de março. A história do assassinato de Tenório Jr. foi encoberta pela ditadura brasileira, apesar dos esforços de Vinicius para localizar o amigo.

No Brasil, a mídia tradicional preferiu se escandalizar com a desclassificação da Seleção Brasileira por causa do arranjo entre governos que teria feito o Peru entregar o jogo para a Argentina. Os donos da casa precisavam de uma diferença de quatro gols a favor para eliminar o Brasil e ir à final. Ganharam por 6 a 0. Por aqui, a seleção comandada pelo técnico Cláudio Coutinho, militar de patente capitão, ganhou status de campeã moral.

No mundo real, que as manchetes dos jornais não refletiam, a imoralidade que corria solta era a ordem para matar e sumir com os vestígios das vítimas. Se, no Brasil, o capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho – o Sérgio Macaco –, que comandava a tropa de elite Para-Sar, de salvamento, não aceitou a ordem do brigadeiro João Paulo Burnier de explodir a central de gás do Rio de Janeiro (Gasômetro) em 1968, o que mataria centenas de pessoas num atentado que seria atribuído aos comunistas, na Argentina a Aeronáutica foi peça fundamental no sumiço dos corpos dos presos políticos. De helicóptero, milhares foram atirados ao mar – já mortos ou ainda vivos, dopados.

Tudo isso aconteceu enquanto nos estádios argentinos o mundo fazia de conta que a disputa entre as nações se dava pela mediação de uma bola de futebol.

A história de Laura Estela Carlotto, estudante de história da Universidad de la Plata e militante da Juventud Peronista, resume a tragédia argentina. Sequestrada em novembro de 1977, gravida de três meses, foi mantida viva em um centro clandestino de repressão até o nascimento do bebê. A criança, um menino, segundo relato de ex-presas que sobreviveram, nasceu em 26 de junho de 1978, apenas dois dias após a Argentina vencer a Holanda por 3 a 1, em Buenos Aires, e sagrar-se campeã mundial pela primeira vez.

Estela Carlotto, líder das Abuelas de Plaza de Mayo

Estela Barnes Carlotto, professora e mãe de Laura, deixou a profissão para dedicar–se à busca da filha desaparecida e do neto, sequestrado pela ditadura. Ele foi um dos cerca de 500 bebês roubados de suas famílias.  O corpo da filha lhe foi entregue pelos militares dois meses depois, com a recomendação de que voltasse à sua rotina de aulas. Ela não obedeceu.

Ao lado de outros familiares, Estela criou a organização Abuelas de Plaza de Mayo. Com apoio de militantes dos direitos humanos e da luta pela memória, verdade e justiça, as avós criaram um banco de dados genéticos. Graças a ele, e a uma intensa campanha para busca dos filhos e netos entregues a outras famílias, conseguiram identificar, localizar e restituir a verdadeira identidade de 108 deles. Faltam 392. Um deles é Guido de Carlotto, filho de Laura, que queria que o filho tivesse o mesmo nome do avô.

A conquista do título não encobriu as atrocidades cometidas pelo regime do general Videla. Preso e condenado por genocídio, ele morreu na prisão em 2013.
  
(Por Milton Bellintani)

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