sexta-feira, 16 de maio de 2014

O time que ousou enfrentar os nazistas

Quando Hitler iniciou a Operação Barba-Roxa, em junho de 1941, pegou a União Soviética completamente de surpresa. Num piscar de olhos, seus exércitos varreram o Leste Europeu, trucidando os mal preparados soldados soviéticos. A capitulação de Kiev foi total, e a capital ucraniana tornou-se uma cidade faminta e esvaziada, com grande parte da população encarcerada em prisões e campos de trabalho forçado.

Jogadores do F.C. Start que enfrentaram os nazistas

Entre esses prisioneiros estavam muitos dos membros da equipe de 1939 do glorioso Dínamo de Kiev, considerado o melhor time da Europa pré-guerra. Alguns atletas morreram logo nos primeiros dias. O goleiro reserva Yatchmennikov, foi preso e morto no campo de Darnitsa, onde ficaram também presos outros jogadores, como Trusevich e Balakin, mas estes resistiram ao tratamento dado no campo de concentração e conseguiram mais para frente serem soltos e ficarem na cidade de Kiev vigiados. Outro atleta do Dínamo, o judeu Lazar Kogen foi morto no massacre de Babi Yar junto com o ex-árbitro de futebol, também judeu, Lev Chernobylsky. Esse massacre foi conhecido por mais de 30 mil judeus serem levados a um cemitério e serem fuzilados.

Antes da guerra, o Dínamo de Kiev era um time que tinha na década de 1930 justamente se tornado a melhor equipe da Ucrânia, se destacando internacionalmente. Os times ucranianos, em sua maioria, assim como os russos, foram criados em clubes esportivos já existentes em fábricas, escolas, escritórios e unidades militares. O Dínamo era o clube esportivo da polícia e do Ministério do Interior em Kiev. Havia filiais dele na maioria das cidades da União Soviética, sendo a mais notável delas o Dínamo de Moscou, principal equipe de futebol do campeonato da capital. Em novembro de 1927, o Dínamo de Kiev nasceu de um time composto inteiramente de funcionários da polícia local. Nesta época, o melhor time local era o Zheldor, mais conhecido por Lokomotiv. Tratava-se de uma equipe poderosa da década de 1920, formada por trabalhadores que eram operários do Sistema Ferroviários Sudoeste. 

Na falta de campeonatos formais de futebol, times de várias repúblicas soviéticas competiam em base regional. Com a profissionalização, os times abriram as portas para jogadores realmente profissionais. No início da década de 1930, o Dínamo começou a contratar jogadores profissionais, tendo a sorte de encontrar uma geração de rapazes que iriam se tornar os melhores jogadores do país. Um dos talentos de maior destaque era Nikolai Makhinya, atacante com surpreendente habilidade natural. Outro atleta contratado na mesma época foi Konstantin Shchegotsky, já conhecido por ser um intelectual, mas em campo era um atacante devastador, formando com Makhinya uma das melhores duplas de ataques da história.

Esses jogadores se juntaram ao goleiro Anton Idzkovsky e aos defensores Fyodor Tyuchev e Victor Shylovsk, todos representantes do Dínamo na seleção ucraniana. O sucesso do Dínamo foi imediato. Com 5 jogadores da seleção, foi campeão ucraniano de 1932 em cima do melhor time do país na época, o Khrakov, vencendo a partida final por 3x1. Em 1935, num gesto de solidariedade internacional entre as associações de trabalhadores da Bélgica e da França, o time de Kiev disputou amistosos na França, ganhando todos, com 88 gols marcados e apenas 3 sofridos, vencendo inclusive o forte Olímpico Estrela Vermelha de Paris, com uma goleada por 6x1.

Novos talentos passaram a se juntar ao time, como o goleiro Nikolai Trusevich, que se tornou famoso por correr bem longe da meta e chutar a bola ao invés de agarrá-la. Numa época em que era comum o goleiro ser considerado bom quando conseguia agarrar a bola com as mãos, sendo o último recurso da defesa e raramente se afastando da linha do gol, Trusevich se tornou uma lenda por acrescentar uma dimensão nova ao jogo dando ao seu time mais opções de ataque, ao competir fora da sua linha da pequena área, colocando-se muitas vezes como um zagueiro extra. 

No mesmo ano que Trusevich foi contratado, em 1935, o habilidoso zagueiro Alexei Klimenko também entrou para a equipe. E o Dínamo passou a disputar o Campeonato Soviético, com a organização do primeiro campeonato nacional de clubes pela URSS. Com os fortes times da Rússia, como o Dínamo de Moscou e o Spartak de Moscou, o Dínamo de Kiev ficou em segundo no primeiro campeonato e em terceiro no campeonato seguinte. Em 1938, apesar da quarta colocação, o Dínamo de Kiev bateu um recorde no número de gols marcados, tendo o melhor ataque da competição com 76 gols feitos.

Nos anos seguintes, o time só se afirmava cada vez mais como uma potência do leste Europeu, com um time de habilidade incrível e jogando um futebol ofensivo dos mais bonitos na época. A evolução do time, no entanto, foi prejudicada pela guerra que pegou de surpresa a URSS em 1941. Com a invasão nazista, o time do Dínamo foi fechado, com alguns jogadores sendo mortos logo nos primeiros dias, e outros morrendo durante o conflito em Kiev.

Os jogadores sobreviventes, assim como toda a população da cidade, foram bastante mal tratados, ficando sem comida para sobreviver. Como o Dínamo era o clube esportivo da polícia e do Ministério do Interior em Kiev, embora muitos jogadores não ligassem para política, na época todos os atletas do time deviam ser filiados à NKVD, a polícia secreta. Assim, sabendo da possível repressão que os nazistas fariam quando soubessem que eram filiados à NKVD, mesmo não sendo comunistas, muitos atletas procuraram o chefe da NKVD em Kiev, Lev Varnavsky, buscando proteção para suas famílias e para eles mesmos, pedindo que fossem todos evacuados para cidades mais seguras, fugindo de Kiev. Varnavsky não autorizou que eles saíssem, mas permitiu a saída das famílias, que conseguiram se salvar fugindo antes da cidade ser completamente sitiada.

A segurança dos jogadores acabou se dando pela ajuda de um desconhecido. Após a invasão nazista em Kiev, a sociedade da cidade foi dividida em quatro castas, designadas pura e simplesmente em termos raciais, estando no topo da lista os ucranianos descendentes de alemão. Josef Kordik falava alemão como nativo e trabalhava na Padaria número 3 antes da invasão. Após a tomada da cidade e reativação das padarias, Kordik foi colocado pelos alemães como chefe da Padaria número 3 que passou a ser chamada de Padaria número 1. Foi ele quem chamou o goleiro Kolya Trusevich, que era mestre-padeiro além de jogador, para trabalhar na padaria. Kordik já tinha como empregados diversos atletas como ginastas, ciclistas e boxeadores. 

Kordik convenceu Trusevich a convidar outros jogadores para trabalharem na padaria, podendo treinar futebol na fábrica, tendo onde dormir e, o principal, pão para se alimentar, tudo isso com relativa proteção e segurança. Trusevich primeiro conseguiu encontrar o atacante Makar Goncharenko. Juntos acharam outros atletas sobreviventes do Dínamo, como Nikolai Makhinya, Geogry Timofeyev, Ivan Kuzmenko, Pavel Komarov, Alexei Klimenko, Nikolai Korotkykh, Mikhail Putistin, Feodor Tyutchev e Mikhail Sviridovsky. Encontraram ainda três jogadores do rival Lokomotiv: Mikhail Melnik, Vasily Sukharev e Vladimir Balakin. Inspirada pelo carisma do goleiro Trusevich, a equipe do Dínamo foi reformulada e era novamente uma equipe, treinando na fábrica de pães. 

Com a resistência controlada pelos nazistas, os alemães passaram a tentar de todas as formas manter a normalidade da sociedade em Kiev, apesar da proximidade dos combates. Sabendo que um padeiro tinha montado um time de futebol, os nazistas decidiram deixar que algumas partidas fossem realizadas na cidade. Autorizaram alguns times a jogar, convidando assim os atletas da padaria a jogar algumas partidas, na tentativa do povo de Kiev ter alguma diversão e esquecer da repressão alemã. Foi aí que o time liderado por Trusevich entrou para a história da Segunda Guerra Mundial, com o nome de F.C. Start.

A decisão de participar de jogos convidados pelos nazistas até gerou certo desconforto entre os jogadores, afinal podiam ser acusados de colaboracionistas com os alemães. Mas foi o goleiro do time que convenceu a todos, fazendo um discurso lembrado pelos sobreviventes, que segundo eles, Trusevich disse: "Não temos armas, mas podemos batalhar pela nossa própria vitória no gramado. Vamos jogar com a cor da nossa bandeira, os fascistas vão ver que esta cor não pode ser derrotada".

Uniformizados com camisa vermelha, o time venceu de forma brilhante todas as partidas que jogou, levantando o ânimo do povo de Kiev. Com uma formação inicial posta em um 3-2-5, tática comum na época, a equipe contava com Trusevich no gol, Alexei Klimenko, Feodor Tyutchev e Mikhail Sviridovsky na zaga, Geogry Timofeyev e Nikolai Korotkykh no meio de campo e Makar Goncharenko, Nikolai Makhinya, Ivan Kuzmenko e Pavel Komarov formando o ataque. O F.C. Start ainda contava no elenco com o veterano Mikhail Putistin e os três atletas do Lokomotiv: Mikhail Melnik, Vasily Sukharev e Vladimir Balakin.

A primeira partida oficial do campeonato organizado pelos alemães foi disputada em 7 de junho de 1942, colocando o time de Trusevich ante outro time formado por ucranianos, o Rukh. Este era um time formado por um ex-jogador do Lokomotiv, Georgi Shvetsov, com jogadores que compartilhavam uma simpatia pelos fascistas. O F.C. Start venceu facilmente por 7x2. A segunda partida, ante um time da guarnição húngara, aliados da Alemanha, foi disputada em 21 de junho e vencida por 6x2. A vitória seguinte, na terceira partida, contra a guarnição romena foi ainda mais fácil: 11x0. O quarto jogo foi o primeiro contra um time formado por alemães. Em 17 de julho a surra tomada pelo PGS, equipe de uma unidade militar alemã, que levou 6x0 do Start, foi a primeira a incomodar os nazistas.

A estrela do time ucraniano brilhava após golear times formados por soldados alemães, húngaros e romenos. Mas, essas vitórias começaram a perturbar os alemães. Afinal, aquele time de ucranianos passou a ser considerado uma afronta e uma forma de resistência ao III Reich. Já com olhos atentos ao Start, os alemães preferiram ainda manter a política de não-interferência para deixar a população de Kiev calma. Permitiram assim o quinto jogo, em 19 de julho, contra mais um time húngaro, o MSG Wal, este derrotado por 5x1. Não aceitando a derrota, o time pediu revanche, autorizada pelos nazistas e marcada para uma semana depois, em 26 de julho. Foi a vitória mais apertada e difícil do Start: 3x2, com bastante sofrimento e sendo considerada épica pelo povo de Kiev. Tudo o que os alemães não queriam ressaltou-se mais ainda, com os jogadores do Start se tornando heróis populares cada vez mais.

Os jogadores-padeiros eram lembrados pela população ainda mais porque  viravam a noite trabalhando na fábrica de pães. Mesmo não treinando como os outros times que enfrentavam, nem descansando como deviam, os jogadores do Start ganhavam todos os jogos. Os alemães não tiveram mais dúvidas e resolveram que deveriam conter aquele símbolo de resistência. Para isso, foi marcado o sétimo jogo do Start, num 6 de agosto. Dessa vez, determinados em acabar com a festa dos atletas ucranianos, os alemães apostaram suas fichas na forte equipe Flakelf, o time da Luftwaffe, a famosa força área alemã. Mas o tiro saiu pela culatra mais uma vez, e o Start teve uma de suas vitórias mais fáceis da temporada ao ganhar por 5x1.

No entanto, essa vitória determinou a sorte dos bravos jogadores ucranianos. Assim como o MSG, o Flakelf exigiu uma revanche, marcada para o dia 9 de agosto, um domingo. O Estádio Zenit ficou completamente lotado, de um lado o povo de Kiev, de outro cheio de policiais e tropas alemãs.  A política de não-interferência foi deixada de lado. Antes de começar o jogo o árbitro da partida foi visitar os atletas do Start. O "juiz" era um oficial da SS e entrou no vestiário dos ucranianos para alertar que eles deviam jogar dentro das regras e, antes da partida começar, deviam saudar os oponentes à maneira alemã, ou seja deviam fazer a saudação nazista, gritando "Heil Hitler".

Mas, defendendo a honra da cidade, a equipe acabou golpeando novamente o orgulho alemão: ao entrarem em campo e se perfilarem junto aos jogadores do time adversário, os atletas do Start ergueram os braços, dobrando-os sobre os peitos e gritaram "FizcultHura!", uma expressão que significava "vida longa ao esporte". Quando iniciado o jogo, o árbitro da SS mostrou que não marcaria nenhuma falta do Flakelf e o jogo se desdobrou como uma batalha em que os atletas alemães bateram à vontade, enquanto os jogadores ucranianos tentaram segurar o jogo. A segunda partida contra o time da Luftwaffe ficou marcada na história como uma alegoria da resistência que geraria consequências brutais e também enobrecedoras para os jogadores e a Ucrânia.

Preocupados com as repetidas faltas sofridas e não marcadas, os atletas do Start ficaram aturdidos ao começar o jogo, deixando passar o primeiro gol do Flakelf. Mas, logo o Start se recuperou e marcou seu primeiro gol com um chute fora da área do atacante Ivan Kuzmenko. Makar Goncharenko virou a partida e antes do final do primeiro tempo ainda marcou mais um, fechando a primeira etapa em 3 x 1 de virada. O público ucraniano não acreditou na grande virada que acontecia. Os alemães se sentiam humilhados. Então, no intervalo, o Start recebeu novamente a visita de oficiais da SS, que disseram que eles deviam pensar nas consequências caso ganhassem a partida, afinal deviam compreender que o time não podia esperar a vitória. No entanto, durante o segundo tempo, cada lado marcou dois gols e a partida terminou com vitória do Start por 5 a 3. Pior, o jovem zagueiro Alexei Klimenko impôs um insulto final, humilhando e constrangendo ainda mais os alemães, ao driblar a defesa alemã e ao invés de chutar ao gol vazio, virar-se e colocar a bola novamente em campo, chutando-a ao centro do campo.

A "Partida da Morte", como passaria a ser conhecido este jogo, não teve desdobramento imediato. Os nazistas ainda permitiram um último jogo do time ucraniano contra o Rukh, em uma revanche para o primeiro time que eles enfrentaram. Em 16 de agosto, após vencerem novamente os rivais, dessa vez por 8x0, todos os atletas tiveram ordem expedida para que fossem presos. Assim, oficiais da Gestapo foram à padaria de Josef Kordik e prenderam todos os jogadores do Start, alegando que eles pertenciam à NKVD. Mikhail Putistin teve sorte de seu nome não estar na lista de atletas do Start e não foi preso. Os três atletas do Lokomotiv, Mikhail Melnik, Vasily Sukharev e Vladimir Balakin, como não tinham ligação com a NKVD foram soltos.  Os demais foram conduzidos a interrogatórios, onde a Gestapo os torturou. O único atleta que era oficial ativo da NKVD e stalinista, Nikolai Korotkykh, recebeu o chamado "tratamento especial" da SS, morrendo após 20 dias seguidos sob tortura. Durante os interrogatórios, Pavel Komarov trabalhou para os nazistas e foi o único atleta libertado. Todos os demais foram enviados ao famoso campo de trabalho de Siretz.

Este campo passou para a história como um dos mais cruéis de todas as guerras que já existiram. Siretz foi um campo de extermínio em massa, com uma a cada três pessoas morrendo por dia. O campo de Siretz era uma sentença de morte aos jogadores, que uma hora ou outra acabariam perecendo. Na manhã de 24 de fevereiro de 1943, foram executados o atacante Ivan Kuzmenko, o zagueiro Alexei Klimenko e o goleiro Nikolai Trusevich. Três atletas que estavam sendo usados como sapateiros no campo de extermínio tiveram a sorte de escapar da morte certa. Fyodor Tyuchev, Makar Goncharenko e Mikhail Sviridovskiy estavam em Kiev, consertando as botas dos policiais, quando os exércitos de Stálin, que já estavam retomando seus territórios, invadiram a capital ucraniana e expulsaram os alemães. Esses poucos sobreviventes se tornaram os responsáveis por propagar a história de sua partida contra os nazistas.


Quanto ao Dínamo de Kiev, com quatro atletas mortos e um quinto que fugiu com os nazistas, o time só voltou a obter sucesso com o ex-goleiro Anton Idzkovsky como técnico, em 1954, ao vencer a Copa da URSS. Nos anos seguintes, o Dínamo venceria 9 Copas da URSS e 13 Campeonatos Soviéticos. E teve sua maior glória nos anos de 1975-76, ao tornar-se o primeiro time da União Soviética a vencer um campeonato europeu, ganhando a Copa Européia dos Campeões em 1975 e, no mesmo ano, a Supercopa Européia, esta conquistada em cima do poderoso Bayern de Munique de Franz Beckenbauer, com vitórias por 1x0 em Munique e 3x0 em Kiev. Apesar desses feitos mais recentes, com certeza o Dínamo de Kiev passou para a história pelo grande jogo em 9 de agosto de 1942, em que seus atletas ousaram enfrentar os nazistas, mesmo sabendo das possíveis consequências, e venceram se tornando símbolos da resistência ucraniana.




(por Thomaz Lemmi)




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Para saber mais sobre o assunto, leia o livro "Futebol & Guerra - resistência, triunfo e tragédia do Dínamo na Kiev ocupada pelos nazistas", de Andy Dougan.

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